domingo, 20 de março de 2011

Boneca de pano

A voz era suave e ternas eram as palavras. Mútua ternura que restituiu um desígnio enternecido. Como convém, rendeu-se à tempos mais remotos que este. Estava tudo desolado, em pouco tempo eu senti a sua falta e então me lembrei da sua inexistência. A alma encantava as ruas, o pobre louco morria de amargura embaixo da chuva. O relógio da catedral enfim marcou meia-noite, a triste estátua de mármore chorou. A lua se ocultava numa nuvem escura, calou-se a flauta do mendigo. Aquele homem digno olhou para a catedral e zombou-a com um riso de escárnio satânico, de pobre artista. Escarneceu debochando como o ardor de um fogo julgando outra vez. Sentou-se na calçada e para a chuva caindo olhou. Lembrou-se de um amor perverso, maldoso e invalido. O amor tem lábia, fazes penar ao som de magos decantes. É chalaça, é cantiga de mau trovador. Eu vivia como aquele mendigo. Aquela flauta era a poesia ideal. Eu amei sem ser poeta, fui louca, pequei, fiz mal. O desatino me faz recordar de um tempo que ainda não passou. Tudo a minha volta transmite ódio, tudo a minha volta emite amor, tudo a minha volta me causa dor. O jeito é cantar pela mata pra ver se endireito a minha vida, vou deixar as serenatas malditas. Se eu pudesse desfazer tudo aquilo que está feito, só assim o amor seria contrafeito. A chuva enfim acabou na noite sonorosa, o luar era bonito se visto do alto da serra. Era um momento, era um céu estrelado, era um homem com a sua viola e uma morena do lado. Mas há quem entende o amor. Sabe lá e quem será? Até hoje eu tento encontrar explicação, mas não há. Você se engana perante indecisos caminhos dessa vida cigana. Pedi para a estrela do tempo ensinar-me a sonhar, mas tudo é tão ofuscado quanto dizer que o pôr do sol sempre será a mesma lua. O amor é cinismo, palavras e silêncio. O maior sarcasmo de todos os tempos. Tentamos encontrar respostas para a vida, mas a vida está na flor, a vida é sorrir ao lembrar-se de um sorriso, é amor. Mas não confundam o amor com extremos, afinal o bem e o mal morrem no final. No corredor da noite daquela cidade silenciosa, emanava novamente a flauta do mendigo que a lua calou. Observei mais um pouco aqueles trechos da vida de uma vida esquecida. Voltei para casa, a luz era farta pela fresta da porta entreaberta. Na minha cômoda, o retrato antigo do seu sorriso envelhecia comigo. Eu enfrentei a insônia naquela noite, eu pus à prova minha resistência, tive que fingir o que não sentia, mas a minha alma abstrata ainda é tudo que me resta. Aqueles trechos desolados deixaram-me apenas sofismas, o resto você calou. Mas teu oculto sorriso ainda é a minha sina, a minha trova. O sonido das ondas era manso, o vento sonegou que descalço caminhava à beira da praia. O sol renasceu e brilhou sob aquele tenebroso alarido. A melancolia cessou suavemente, as minhas mãos caíram inertes sobre o manto ainda fremente. Dormi então. Sonhei com uma lembrança que me recordava uma verdade, lembrança que o sonho me trouxe sem dó nem piedade. O sonho dizia astuciosas palavras sobre o dom de ler nas estrelas. Entre cânticos de alegria, o amor à repugnância. Na verdade eu nada entendia o que sonhava, mas continuei clamando um mísero delírio. Só compreendia que tinha um sonho na mão, mas não sabia sonhá-lo, eis a questão. Depois de infinitas horas, o sino da catedral  tocou, mas continuou mudo. Acordei do sonho e continuei a sonhar que descalça fui novamente dar bom dia ao sol, ao som da flauta daquele mendigo. 

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